Mídia, Seletividade Penal e a Tragédia do Bondinho de Santa Tereza
O sistema penal é seletivo. Significa dizer que os destinatários do aparelho estatal repressivo são selecionados nos estratos sociais mais carentes: os pobres. A sociedade clama por justiça e se manifesta por meio de slogans que ora podem envolver uma falsa noção de “impunidade”, ora a elitização dos direitos humanos (“direitos humanos para humanos direitos”). São apenas exemplos.
A seletividade do sistema mostra toda sua força em casos como do acidente com o bondinho de Santa Tereza, ocorrido em Agosto de 2011. O direito penal cotidiano, em sua rasa dogmática é limitado a “deveres objetivos de cuidado”, “negligências” e institutos congêneres. Na prática não alcança os reais responsáveis pelas tragédias que nos assolam e ganham as páginas dos jornais. Impotente, se falsifica em manchetes sensacionalistas.
A opinião pública(da) parece ver na cadeia e na prisão a solução para desmandos que estão fora do raio de ação do seletivo sistema penal. Panaceia? A cantilena punitivista tem lá suas “vantagens”. Numa sociedade estratificada em classes, a via estreita e rígida da repressão penal se alimenta desse discurso que, aliás, é bastante nutritivo. Esse “puna-se!”, simplificador de problemas profundamente complexos, é a argamassa de um processo de emparedamento da pobreza e dos estratos sociais desfavorecidos.
Episódios como a tragédia do bondinho de Santa Tereza mostram o ridículo e o demagógico de uma “enérgica atuação” para punir os culpados. O Ministério Público denunciou cinco funcionários da CENTRAL (Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística) – motorneiros e mecânicos -, enredado que está nas práticas seletivas, tão comezinhas ao cotidiano forense. A acusação fala em “lesões corporais” e “homicídios culposos”. Enquanto isso, a investigação que apura a responsabilidade dos “reais culpados” tem curso em sigilo.
Os cinco funcionários selecionados pelo Ministério Público para prestar contas à sociedade puderam ser acusados a partir de investigações mais breves, cujos resultados são de ampla divulgação midiática. Os privilegiados foros – dos que estão imunes ao aparato repressivo estatal – demandam investigação “acurada”. O apuro parece ser prescindível para acusar aqueles aos quais a AMAST (Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa) se referiu como “o lado mais fraco”. A seletividade anda de mãos dadas com o perfunctório representado pela dogmática penal.
O que se quer destacar é o interesse da grande imprensa em manter a agenda pública circunscrita ao tema da punição e do crime, como se as mazelas e os problemas que atravessam todos os estratos que compõem a sociedade pudessem encontrar solução em mais um slogan: “Puna-se!”. À complexidade das relações travadas numa sociedade marcada por profundas desigualdades, responde-se com a simplicidade punitivista. Eis a afasia da consciência pública.
Falaciosa é, em consequência, a ideia de recuperação e ressocialização do preso. Sabemos que as masmorras que servem de depósito de “humanos tortos” (porque não seriam humanos direitos), em pleno século XXI continuam a servir de moinho de gastar gente. Daí os discursos paralelos e recorrentes de aumento de penas e do paulatino esvaziamento das noções de progressividade do regime prisional. A ideia é de eliminação higiênica de populações indesejadas. Como guarnição, a demanda pela construção de mais presídios “enquanto a pena de morte não vem”. Embotado pela vulgata da impunidade, o senso comum ignora a seletividade penal.
Tem de haver uma forma de trazer para a agenda pública temas que escapem à superficialidade do discurso repressivo puro e simples e que possam alcançar questões estruturais capazes de dar conta da desigualdade social na qual estamos mergulhados, apesar de sermos festejados como a sexta economia do mundo. A grande mídia precisa ir além do policialesco, justamente para desvelar mitos penais e seus inconfessáveis interesses ocultos. Quanto mais alto é o grito de “puna-se”, mais o lombo dos pobres fará ecoar o estalo de chicotes eternos. Urge, de maneira franca, fomentarmos a consciência de classe. Utopia, certamente. Mas é preciso que seja dito.
Ricardo André de Souza
Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro e membro do DPMOV – Defensores Públicos em Movimento