A quarta entrevista da série realizada pelo Fórum Justiça-RS sobre a questão indígena e a Ditadura Civil-Militar traz o relato da indigenista Juracilda Veiga, quem atua junto a comunidades indígenas no Sul do país.
A situação dos povos indígenas no sul do Brasil foi de invasão e retirada de direitos ao longo da história do Brasil. Houve no Rio Grande do Sul um pequeno período de 1916 a talvez 1921, quando as Diretorias de Terra estavam sob a égide da filosofia positivista que buscava assegurar direitos aos povos indígenas com a demarcação de suas terras, o que não chegou a se concretizar na totalidade, no entanto, as terras reservadas para os indígenas foram constituídas naquele período, sob a batuta de Carlos Torres Gonçalves.
Depois disso, as Diretorias de Terra, sempre nas mãos dos políticos locais, exerciam um poder ilimitado nas terras indígenas. Desde sempre os indígenas deveriam “progredir”, e isso significava trabalhar no sistema capitalista e estar a serviço das oligarquias locais.
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967 depois que o Relatório Figueiredo denunciou o desrespeito e atrocidades cometidos contra os indígenas no país, por agentes públicos. No Rio Grande do Sul, apenas o Posto Ligeiro estava dirigido pelo SPI, os demais postos eram comandados pelas Diretorias Estaduais de Terra. Essas reduziram áreas já demarcadas ou delimitadas como as de Inhacorá.
Essa mudança encheu os indígenas de esperança, no entanto, a forma de atuação da FUNAI continuou a prática vigente no SPI.
Em todos os estados do sul os indígenas eram utilizados na abertura de estrada, muitas vezes com a promessa de que teriam suas terras demarcadas e escrituradas para a comunidade como pagamento do trabalho realizado, ouvi isso em Mangueirinha (PR), Xapecó (SC) e em Nonoai (RS). E essa promessa nunca foi cumprida na totalidade. E aquelas demarcadas e re-demarcadas a menor, ainda foram destinadas à produção de interesse do mercado, como trigo, soja, madeira, etc.
Da década de 1940 até 1967, todos trabalhavam nas lavouras do Posto, chamadas de comunitárias, em trabalho forçado, homens e mulheres e toda produção era vendida para manter o serviço do Posto e com certeza também desviar algum para as chefias.
A população recebia comida feita numa cantina, de má qualidade, polenta e chá, pouca carne, uma vez por semana apenas. Com horário para iniciar e terminar o trabalho. Esse era o tempo do panelão conhecido por todas as comunidades de SC e RS.
As mulheres abortavam no trabalho, (espontaneamente) e não podiam ir enterrar o filho, antes do fim do dia.
Com a Ditadura Militar, as aldeias foram tomadas por coronéis, que criaram um corpo de “milicianos” indígenas para protegê-lo e para fazer aplicar as “leis”. As lideranças tradicionais foram desprezadas e lideranças da confiança do “coronel”, Chefe do Posto, foram impostas às comunidades através de indicação do chefe de Posto ou de eleições com voto aberto e, portanto, dirigidas.
Os indígenas que contestavam eram perseguidos, presos e torturados na cadeia do Posto e muitas vezes transferidos, perdendo sua pátria, seus bens e ficando em exílio, castigo que atingia toda a família. Um indígena só é cidadão na terra em que nasceu. Mesmo que chegue à posição de liderança, sempre será apontado pelos demais como “estrangeiro”.
Estavam proibidos de receber visitas de agências indigenistas como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Alguns indígenas que viajavam a convite do CIMI para reuniões de interesse indígena, ao voltar para a Terra Indígena, eram interrogados e presos.
Na década de 1970 a FUNAI criou o Projeto Pinho, que acabou com os pinheirais nativos, e o projeto Trigo, que retirou das famílias seus sítios e terras planas para fazer “roças mecanizadas do Posto”, interferindo na forma de ocupação e aproveitamento das terras pelas comunidades.
Como o Marechal Rondon era militar, os indígenas sempre consideraram o exército seu aliado. Nunca relacionaram seus problemas à instituição, mas aos desmandos do mandante local.
No entanto, foi um período de recrudescimento do autoritarismo nas terras indígenas.
No Paraná e Santa Catarina as indígenas foram obrigadas a passar por exames ginecológicos para que os médicos pudessem estudar o benefício do parto de cócoras, que é uma tecnologia indígena. Esse estudo deu tão bom resultado que hoje no Centro de Atendimento Integrado a Saúde da Mulher (CAISM), do Hospital da Unicamp, se faz parto de cócoras, enquanto as mulheres e parteiras Kaingang foram ameaçadas de continuar essa prática sob risco de prisão, caso mulher ou criança morresse num desses partos tradicionais. A medicina fitoterápica e de massagem dos Kaingang é muito desenvolvida, mas foi colocada sob suspeição e descrédito pelos agentes de saúde e médicos que atendiam a população. Vi durante esse tempo auxiliar de enfermagem destruir as garrafadas de remédios fitoterápicos dos indígenas sob a alegação de que não serviam para nada.
Ainda hoje, o atendimento nos hospitais é traumático para as mulheres indígenas, pelo desrespeito, preconceitos e má qualidade do atendimento. Nenhum trabalho foi feito no sentido de uma medicina que mediasse as questões culturais.
Os Kaingang faziam um ritual para os mortos onde produziam uma cerveja de hidromel chamada de Kiki. Ela foi proibida junto com as bebidas destiladas introduzidas pelos não indígenas. Esse ritual permite o acesso dos mortos recentes ao paraíso. Isto é, a aldeia dos parentes mortos, Weinkupring Iamá, ou Numbê. Essa prática foi desqualificada pelo Summer Instituto, que transformou a palavra numbê de mundo dos mortos, foi traduzida por inferno. E aumentou grandemente a entrada das igrejas evangélicas pentecostais nas terras indígenas, que desrespeitam essas práticas.
Atualmente não há como recuperar a prática desse culto aos mortos porque os rezadores morreram sem transmitir os saberes e poderes para outros aprendizes. Isso é uma perda irreparável.
Uma reparação aos povos indígenas começa pelo reconhecimento de que são sociedades anteriores à existência dos Estados Nacionais, e as terras necessárias à sua sobrevivência física e cultural devem ser asseguradas pelo Estado Nacional. As terras de ocupação imemorial, mesmo que ocupadas há um século por não indígenas, devem ser indenizadas e devolvidas aos índios, com igual indenização a eles pelas condições ecológicas perdidas e pelos lucros cessantes ao ter a terra usurpada para a colonização. Outras devem ser adquiridas como forma de reparação. É preciso assegurar o direito à terra a todo cidadão indígena, impedindo que autoridades autoritárias juntem para si a maior parte da terra indígena, com o objetivo de arrendar para o capitalista local. As pessoas devem receber apoio para produzir na própria terra, através de financiamento a fundo perdido da produção.
Todo o esforço feito nesse “processo civilizatório” de investir para substituir a língua indígena pelo português, favorecer os casamentos inter-étnicos, desprezar os conhecimentos da medicina indígena, aviltá-los moralmente obrigando a viver como empregado e não da sua terra — tem como objetivo declarar os indígenas não indígenas, tomar suas terras e jogá-lo na vala comum dos desvalidos da sociedade nacional.
O Estado deve atuar no sentido de fazer valer esses direitos frente à sociedade majoritária, afinal hoje ocupamos 87% do território indígena com o Estado Nacional, que tem a propriedade também dos 13% das terras indígenas.
O Estado sempre será devedor das comunidades indígenas e deve assegurar através de todos os meios as condições para que eles possam viver como sociedades diferenciadas na sociedade brasileira.